Nippon... derando

Friday, September 01, 2006

A vida sem estrelas dos dekasseguis de hotel (*)

A maioria dos hotéis no Japão faz imprimir folhetos de propa­ganda turística de seus estabelecimentos. Ao ver um desses fo­lhetos, o eventual turista jamais poderia imaginar o que está por trás de cada ítem de conforto apregoado, e quantas horas de sono, descanso e lazer são tiradas da vida de cada funcionário do hotel em questão.

Com o incremento da indús­tria do turismo, logo após o ad­vento da bolha econômica, quan­do o Japão começou a experi­mentar um enorme crescimento, os hotéis começaram a proliferar no país. E não pararam mais.

No entanto, a expansão e exploração desse filão do mercado no Japão esbarra no maior problema que todas as demais indústrias japonesas enfrentam, ou pelo menos enfrentavam até há bem pouco tempo: a carência de mão de obra, ou pessoal suficiente para trabalhar na área. O problema foi contornado, em boa parte, com a admissão de estrangeiros, principalmente brasileiros, contratados diretamente no país de origem por terceiros que obrigavam o candidato à vaga a assinar às pressas um contrato sem pelo menos conhecer o local de trabalho.

Hoje, com o estouro da bolha financeira, a recessão econômica ainda no fundo do poço e as conseqüentes demis­sões em massa na indústria automotiva (a que mais contrata mão-de-obra no país), a melhor opção de trabalho para os dekasse­guis são os hotéis. Não que o serviço seja qualificado ou o sa­lário por hora seja elevado (a média é de ¥1.000 para homens e ¥800 para mulheres, e geralmen­te sem os 25% adicionais de hora extra, como manda a lei). Mas é a única área que ainda oferece muitas horas de trabalho diário, mesmo que o funcionário não queira ou não possa trabalhar tan­to quanto é requisitado.

Até 20 horas por dia
O maior in­conveniente en­contrado neste tipo de serviço é quando se des­cobre que os tur­nos de trabalho do dia e da noite são feitos pelas mesmas pessoas, ou seja, o funcionário fica à disposição do hotel praticamente 24 horas por dia, sete dias por semana, 30 dias por mês.

O serviço começa, geralmente, às sete horas da manhã com o desfazer das camas. Como se sabe, os japoneses, salvo raras exceções, não dormem em camas, mesmo em hotéis. Todos os dias à noite são estendidos no chão colchonetes dobráveis, os quais são recolhidos de manhã e guardados em armários embutidos. Assim, um cômodo da casa ou quarto de hotel é, ao mesmo tempo, sala – durante o dia – e quarto durante à noite. Questão de economia de espaço.

Pois bem, assim que o relógio bate 7 horas da manhã, os funcionários saem pelos corredores dos hotéis batendo nas portas dos quartos para acordar os hóspedes e executar o futon-age (o dobrar dos colchonetes e cobertores para guardá-nos armário). Depois do futon-age, é hora do sooji, isto é, a limpeza dos quartos, banheiros e corredores, parando-se ao meio-dia para almoçar.

O trabalho recomeça à uma da tarde para terminar o sooji e preparar as mesas para o jantar. Dependendo da quantidade de hóspedes, não há tempo para descansar entre um turno e outro, que começa às 6 da noite com o a preparação das camas (futon-shiki), quando se retiram os colchonetes e os cobertores (futon) que foram guardados de manhã no armário para serem estendidos novamente. Tal preparação deve ser feita, no máximo, até às 9 da noite, quando os hóspedes já jantaram e voltam aos seus respectivos quartos.

Depois do futon-shiki, é hora de recolher as louças do jantar (gezen) que são levadas para serem lavadas (araiba). Dependendo do número de pessoas que estejam trabalhando num dia de muitos hóspedes, o serviço nunca acaba antes das 3 da madrugada, quando os funcionários voltam ao alojamento (geralmente de bicicleta e no frio) para dormir duas ou três horas antes de começar tudo de novo. No mesmo dia, às 7 da manhã.

Trabalhadores zumbis
Alguns funcionários perdem completamente a noção de tempo e não sabem dizer o dia ou o mês em que estão. A partir do primeiro mês de trabalho, o cansa­ço começa a tomar conta do corpo in­teiro. No terceiro, o serviço passa a ser feito de forma um tanto mecâni­ca e, antes de com­pletar um ano tra­balhando no mesmo rítmo, sem folgas ou descanso por falta de pessoal, o funcionário de hotel já se transformou num zumbi, de tanto sono e cansaço.

Mas, por que ele continua, mesmo depois de ver alguns de seus companheiros (principalmente mulheres) desmaiarem durante o serviço, vitimas de estafa, a ponto de precisarem ser levados às pressas para o hospital para serem internados? A resposta é simples: porque no hotel ele tem mais chance de ganhar muito mais por mês que qualquer outro dekassegui em outra área.

Um tributo caro
De qualquer forma, não há escolha. Mesmo que prefira ganhar menos, não há trabalho para todos nas fábricas ou em qualquer outro lugar onde haja apenas um turno. Enquanto isso, o dekassegui de hotel vai ganhando dinheiro e perdendo a saúde de forma gradativa. Muitos reclamam de úlcera estomacal, geralmente surgida da necessidade de fazer refeições às pressas, quando comem comida de baixo teor nutritivo comprada nos 7-Eleven da vida. Fazem isso por não terem se acostumado com a comida servida no refeitório do hotel em que trabalham.

São freqüentes também as queixas de dores de cabeça, dores musculares, tensão nervosa, estresse, fadiga, perda de memória etc. Mas o tributo maior a ser colhido por aqueles que desconsideram os sinais de aviso do corpo por trabalharem muitas horas por dia sem descansar, com o objetivo único de ganhar muito dinheiro em tempo recorde, só será conhecido mais tarde, quando percebem as conseqüências que virão na forma de males físicos ainda latentes. Só então descobrirão que o fruto do seu trabalho árduo foi em vão, ao ver seu suado dinheirinho escapar por entre os dedos e indo direto para o bolso dos médicos responsáveis pelo seu futuro tratamento. Será, então, como se tivessem feito uma "corrida contra o vento".

(*) Reportagem de Levi F. Araújo publicada originalmente no jornal Tudo Bem do Japão na edição de 03/12/1994

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